O tema do retorno à casa paterna, ou
ao antigo lar, perpassa a história da literatura desde os seus primórdios.
Começa na Odisseia, poema épico de Homero, com o herói grego Odisseu retornando
[ou tentando retornar] ao seu lar em Ítaca, após dez anos de guerra contra os
troianos. Séculos depois, aparece no livro sagrado dos cristãos, mais
especificamente no Evangelho de Lucas, na Parábola do Filho Pródigo [Lucas
15:12-32]; depois, em nossa era, já na moderna literatura brasileira, é tema
tratado com vertiginoso lirismo no romance Lavoura arcaica, de Raduan Nassar,
e, com realismo cravado de sarcasmo, no romance Allegro ma non tropo, da
escritora brasiliense Paulliny Tort. Agora, apresenta-se como a espinha dorsal
que sustenta os dois eixos temporais, presente e passado, no belo romance de
estreia de Carlos Eduardo Pereira, Enquanto os dentes [Todavia, 2017, 93
páginas], que, para coroar o seu êxito, já é semifinalista do Prêmio Oceanos
2018 e finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2018, na categoria melhor
livro do ano de romance – autor estreante com mais de 40 anos.
Para efeito de comparação, ou de
contraponto a outras obras de abordagem temática semelhante ao romance de
Carlos Eduardo Pereira, fiquemos, a princípio, com a Parábola do Filho Pródigo
e com o romance Lavoura arcaica, obras que tratam, ainda que de modo diferente,
sobre o retorno do filho à casa paterna.
No texto do evangelista Lucas, o
filho decide, por si mesmo, retornar à casa dos pais após dissipar todo o
dinheiro que lhe foi dado assim que partiu para viver a vida ao seu modo e sem
regramento. Retorna, portanto, falido e em busca do perdão paterno. Por um
lance de sorte ou por ação divina, é recebido com festa pelos pais, ainda que
contrariando o primogênito, que ficara e labutara ao lado do pai o tempo todo.
Já no livro de Raduan Nassar, o filho fujão, assim André é mencionado, retorna
à casa dos pais sob a guarda do irmão mais velho, Pedro, que cumpria o dever de
levá-lo de volta. Não retorna, portanto, de livre e espontânea vontade. Não
traz, também, nenhum sinal de conquista material resultante dessa fuga e desse
enfrentamento do mundo fora dos domínios da casa comandada pela severa
disciplina religiosa do pai. Se fugiu para se livrar do que o atormentava, o
desejo reprimido pela irmã, retorna ainda mais tomado por ele e em completa
possessão. No texto bíblico, o filho pródigo encontra acolhida e compreensão
por parte dos pais; no romance de Raduan, o retorno de André será marcado pelo
confronto ao poder conservador do patriarca e pela tragédia que atinge a
família. No romance Enquanto os dentes, o protagonista Antônio, que havia
deixado a casa dos pais há 20 anos, logo após abandonar a Escola Nacional da
Armada, para onde fora mandado com o objetivo de se formar oficial da Marinha,
retorna completamente falido financeiramente, limitado no seu poder de
locomoção e sem a certeza de que irá encontrar uma acolhida favorável, já que
terá diante de si a figura conservadora e autoritária do pai militar. Da mãe,
religiosa, resignada e obediente às vontades do marido, pode-se esperar ainda
algum afeto e boa acolhida, mas nada está garantido claramente. Nesse sentido,
ainda que apresente um angustiante final em aberto, é com o romance Lavoura arcaica,
de Raduan Nassar, que o seu livro guarda maior parentesco quanto ao destino do
protagonista, que, para desgosto do pai, é homossexual e artista.
A TEMÁTICA E SUA ABRANGÊNCIA
Obviamente que o romance Enquanto os
dentes não aborda apenas o tema do retorno do filho pródigo à casa paterna.
Esse é só consequência do estado físico limitado e da debilidade financeira em
que o protagonista se encontra. Outros temas de suma importância estão
presentes, entre eles a questão da homossexualidade, da construção de uma
identidade individual, da mobilidade urbana para pessoas deficientes, o uso da
memória como fio condutor da narrativa etc.
Essa homossexualidade, que Antônio
procura não demonstrar ostensivamente, se manifestou desde cedo, o que lhe
criava problemas com o pai conservador, como da vez em que, tentando
reproduzir, junto a um grupo de garotos na rua, o modo entusiasmado com que o
pai falava do piloto Nelson Piquet, “aquele, sim, que era um macho de verdade.
Brigão, mulherengo e bom piloto” [pág. 13], acaba se excedendo nos trejeitos e
virando motivo de chacota de todos ali. [Talvez por isso, na vida adulta, tenha
se tornado reservado e discreto, tanto no modo de se vestir quanto no de
portar-se.] Além de ser castigado fisicamente pelo pai, como dessa vez, passa a
ser também motivo de desgosto para ele. “Lembra da cara do Comandante, incapaz
de disfarçar o desgosto pelo filho que não se virava muito bem com aquelas
questões” [pág. 33]. Aí se referindo ao universo da navegação e da sua relação problemática
com o mar, logo ele que, segundo os desejos do pai, devia servir à Marinha
brasileira. No ambiente da Escola da
Armada, como era de se prever, ele também se sentirá oprimido e será motivo de
piada em relação à sua sexualidade e ao seu modo de ser. “Ele era um cara
educado demais...” [pág. 51]. Só quando abandona esses dois ambientes, a casa
dos pais e a Escola, é que se sentirá livre de fato e poderá dar vazão à sua
verdadeira personalidade, que terá na arte um meio de expressão.
A sua identidade individual se forjou
nesses ambientes hostis, que o obrigaram a criar estratégias de sobrevivência,
ora se mostrando dócil e fraco, ora rebelde e forte. Se parece ser um cara
correto, amigável, hospitaleiro, houve momento, no entanto, em que foi capaz de
dedurar um companheiro de Escola por pura vingança, por ele lhe ter causado uma
punição. “Menos por ter ficado na Escola impedido e mais por um desejo de se
vingar, na semana seguinte, na capela, acabou contando em confissão ao padre do
fundo falso no armário onde Nascimento vez ou outra escondia uns papelotes de cocaína
trazidos para ele, com certa frequência, por um terceiro sargento lotado no
paiol” [pág. 63]. O ser reservado, contido, também o manterá fora do olhar
vigilante e condenador dos outros. De certo modo, parece não estar no mundo
para levantar bandeiras, sejam de que natureza for.
No momento em que a narrativa se
inicia, Antônio já está na rua, seguindo em direção ao terminal das barcas. É a
partir desse ponto que vamos segui-lo em sua trajetória até se aproximar da
casa dos pais. Essa chegada, aliás, vai sendo protelada por ele, ao tomar
pequenos desvios e ao demorar em alguns lugares. Assim, percebemos o quanto é
difícil e angustiante para ele empreender essa jornada. Nesse percurso, que é
narrado no presente e dura apenas algumas horas de uma sexta-feira, ele
encontra pequenos obstáculos que dificultam sua locomoção, os quais ele vence
sozinho ou com a ajuda de terceiros. Sem fazer disso um dramalhão, o autor vai
expondo as dificuldades por que passam os cadeirantes, assim como mostra,
também, o que já há de acessibilidade nas ruas. De modo muito sutil, o livro
funciona como um manual de como lidar com pessoas em situação de cadeirante,
evitando tomá-las por incapazes de se virarem sozinhas. Nesse trajeto, Antônio
encontra alguns antigos conhecidos, que, juntamente com o narrador, têm a
função de nos revelar passagens da sua vida, na infância ou na Escola, ligadas
à sua homossexualidade. É aí que vemos o quanto de pressão ele sofreu enquanto
esteve nesses ambientes marcados pela disciplina severa e o conservadorismo.
Essa sua pequena odisseia, ainda que sem os grandes incidentes da homérica,
mostra-se grandiosa pelo esforço empreendido por ele, tanto para se deslocar no
espaço físico, nem sempre adequado para a sua condição de deficiente, quanto no
de manter-se equilibrado psicologicamente, embora a situação lhe seja
desfavorável.
É do entrelaçar de passado e
presente, do buscar na memória elementos que nos permitem enxergar o personagem
em sua inteireza, ainda que de modo gradativo, que se compõe a estrutura do
romance de Carlos Eduardo Pereira. Enquanto Antônio se desloca no presente, em
sua cadeira de rodas, o passado vai sendo recuperado aos poucos, ora dividindo
espaço com o presente num mesmo parágrafo, ora compondo sozinho um parágrafo ou
mais. O narrador onisciente nos dá conta, nesse ir e vir, do presente ao
passado, dos aspectos que formaram ou deformaram a personalidade do
protagonista.
SUTILEZAS ADOTADAS PELO AUTOR NA
COMPOSIÇÃO DO TEXTO
Carlos Eduardo Pereira, nesse seu
livro de estreia, dá mostras de ser já autor veterano, tal a habilidade com que
tece a narrativa, costurando passado e presente, num enredo não-linear, sem, no
entanto, torná-lo confuso. O narrador em 3ª pessoa, que parece estar colado ao
personagem como se fosse alguém que empurrasse a sua cadeira de rodas, é também
um achado. Ele nos faz estar ali também, seguindo Antônio de perto no seu
retorno à casa dos pais. “Antônio sempre achou esta praça interessante” (pág.
6), diz o narrador a certa altura, como se a apontasse com o dedo. Um elemento que poderia deixar o texto chato
e pesado [as minuciosas descrições de espaços e objetos, como a do terminal das
barcas e a da cadeira de rodas] é desenvolvido com leveza e agilidade, sem
travar o escoar das ações. Mas, em
contraponto a isso, temos, em relação à caracterização do protagonista, e de
outros personagens, uma outra estratégia, ou seja, a da apresentação indireta
do personagem. Assim, sabemos bastante e
de uma vez só sobre como funciona o terminal das barcas, como é constituída a
barca, sobre a engrenagem da cadeira de rodas importada da Alemanha, mas muito
pouco sobre Antônio assim logo de início. O autor dilui, ao longo da narrativa,
as informações que compõem o caráter, os aspectos físicos e psicológicos do
protagonista. Desse modo, só aos poucos vamos tendo acesso aos elementos de
caracterização que nos permitem montar integralmente a sua figura. Só vamos
saber, por exemplo, da cor da pele de Antônio na página 39: “... e Antônio
tecnicamente é mulato, já que o Comandante é branco e a mãe é preta”. [A
questão racial, como poderia parecer aqui, não será tema desenvolvido pelo
autor. O personagem não vivencia, em relação a esse aspecto, nenhum caso de
discriminação.] Da homossexualidade de
Antônio vamos nos inteirando aos poucos também, ainda que o narrador vá
deixando pistas que apontam para essa orientação sexual. Ou seja, não é dito ao
leitor, logo de início, que o protagonista é homossexual, que teve esse ou
aquele caso. O leitor vai pegando cada uma dessas informações e vai montando a
história e o retrato do personagem. Isso obriga-o a manter uma atenção maior
caso queira, de fato, ter uma ideia precisa sobre a natureza dos
personagens.
Enquanto os dentes é romance de
narrativa fluida, sem excessos, que nos cativa desde o início, não nos
permitindo abandonar o personagem enquanto ele retorna fracassado para o antigo
lar. É essa história de tentativa de se firmar no mundo e de fracasso ao final,
que Carlos Eduardo nos apresenta com rigor técnico e estética refinada, sem deixar,
no entanto, que o leitor, ao término da leitura, abstenha-se da reflexão
crítica sobre o destino do ser humano.
[Resenha publicada, originalmente, no caderno de cultura do JORNAL OPÇÃO]
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