Por Geraldo Lima
O romance policial e o romance
histórico sempre foram alvo do desprezo da crítica e da academia, apesar do enorme
sucesso que sempre alcançaram junto ao público. Desde Edgar Allan Poe, pai da
narrativa policial, e de Sir Walter Scott, tido como o criador do romance
histórico, esses gêneros ficcionais têm se mantido de pé, e parece que vão
continuar assim, visto que o número de autores e autoras que se dedicam a eles
só tem crescido, fora e dentro do nosso país.
Agora, quando falamos do romance
histórico-policial, temos uma outra realidade, porque aí a operação de
construir uma estrutura narrativa que une os dois estilos, o policial e o
histórico, torna-se mais complexa e arriscada.
No caso desse gênero literário, a estrutura narrativa apresenta uma trama
policial, ligada, geralmente, à investigação de um crime, e, também, um
registro histórico, juntando personagens reais e fictícios. Costurar essas duas
realidades calcadas na imaginação e no fato histórico, num ritmo que prenda a
atenção do leitor, é que demanda do escritor ou da escritora uma habilidade
extra. A jornalista e escritora Eliana Alves Cruz encarou o desafio e trouxe a
público o seu romance O crime do Cais do
Valongo [Editora Malê, 2018], fruto de exaustiva pesquisa histórica e força
imaginativa.
O crime do Cais do Valongo é um romance histórico-policial, já que sua narrativa parte
da investigação de um crime e se soma às informações históricas referentes ao
contexto em que ele se dá. O crime, no caso, refere-se ao assassinato do rico
comerciante Bernardo Lourenço Viana, noticiado na Gazeta do Rio de Janeiro à
época. Já o registro histórico apresenta o Rio de Janeiro da primeira metade do
século XIX, com a Família Real já residindo no Brasil, e, de maneira mais
minuciosa, os arredores do Cais do Valongo, local de desembarque de africanos
escravizados e onde se dá a morte do comerciante Bernardo Lourenço.
Porém, uma outra narrativa, de
caráter mais subjetivo, se instaura a partir das memórias da africana
escravizada Muana Lómuè, protagonista, juntamente com o mestiço Nuno Alcântara
Moutinho, da história escrita por Eliana Alves. Essa narrativa abarca desde sua
vida na aldeia natal, em Moçambique, junto à sua família, até sua chegada ao
Cais do Valongo, num tumbeiro, e sua posterior destinação à casa do comerciante
Bernardo Lourenço. Essa narrativa, resultante
do relato de Muana ao inglês Mr. Toole, que se diz contrário à escravidão, aproxima
o leitor da cultura africana, com seus mitos e sua diversidade étnica, e,
também, da triste realidade do processo de escravização do povo africano, do
qual a protagonista não escapa.
Essa proximidade com os aspectos
íntimos da personagem Muana, o seu encantamento com o mundo ao redor, com a sua
cultura, o seu despertar para o amor etc., fará com que a destruição dos laços afetivos e
culturais que sustentam a sua existência nos deixe profundamente impactados. Daí
nos encantarmos com a figura feminina forte, resiliente, que não só sobrevive à
tragédia que abate sobre seu povo, como vai se fortalecer intelectualmente e
aprender a driblar os limites que a sua condição de escravizada lhe impõe. “Na Gazeta Rio de Janeiro, o Justino estendia
sua mão para receber o papel, mas não conseguia decifrar nada do que estava
escrito nele e pensava que eu era sem letras como ele e quase todos os outros.
Muito senhor também não sabia. Mais um motivo para esconder muito bem escondido
meu segredo...” [pág. 23]. Muana vai utilizar seu domínio da leitura para se
antecipar, inclusive, aos fatos, mostrando o quanto o conhecimento das letras
pode ser uma arma poderosa: “O Nathaniel, coitado, quase foi parar nos
infernos, se eu não entendesse o que o senhor escrevia” [pág. 19]. Além disso, ela detém um poder que a alça
acima da maioria dos mortais: fala com os mortos, com o espírito dos
ancestrais. E esse é um outro detalhe importante nesse romance de Eliana: a sua
narrativa mescla, com sucesso, o olhar focado no elemento histórico, fidedigno,
e os voos da imaginação atrelada ao mistério e ao fantástico com raízes
fincadas no universo mítico-religioso da cultura africana.
A história é toda narrada em primeira
pessoa: por Nuno Alcântara Moutinho, que conta sobre a investigação do crime
cometido nas proximidades do Cais do Valongo, onde reside e pretende abrir um
negócio, e por Muana Lómuè, que relata sobre os fatos envolvendo o cotidiano na
residência do comerciante assassinado e a trajetória dela da África até o
Brasil. Esses relatos de Muana, além de nos fornecerem uma imagem potente da
África e de seus ancestrais, servirão também para nos esclarecer sobre a
autoria do assassinato do seu senhor. É através do seu olhar afiado que teremos
uma visão mais crítica sobre as condições de sobrevivência dos negros
escravizados. Nuno Moutinho, que não é propriamente um detetive, mas faz bem o
tipo do detetive de romance noir
[beberrão, namorador e afeito a encrencas várias], por sua condição de mestiço,
mulato, tem um trânsito mais livre naquele contexto social, daí poder nos
apresentar, de modo até irônico, uma imagem mais direta das relações de poder
que sustentavam a sociedade brasileira naquele momento histórico.
E sobre o ritmo da narrativa, que
salta da investigação sobre o crime para os relatos de Muana? Talvez, para o
leitor mais afeito à questão policialesca, essa quebra, que às vezes se estende
um pouco mais no rememorar da africana, possa ser um problema, aborrecendo-o.
Mas, atendo-se às intenções da autora, de nos oferecer um retrato mais amplo
sobre a protagonista e a história do seu povo, ao trazer até nós um pouco da
história e da cultura africana, é possível seguir a leitura, aguardando, para
cada início de capítulo, a retomada do processo de investigação feito pelo
Intendente-Geral da Polícia e acompanhado de perto por Nuno Moutinho. E olha que
a autora guarda, aqui, uma surpresa sobre a autoria desse crime!
O crime do cais do Valongo é, portanto, leitura imprescindível para nos aproximar,
através da imaginação estética e da pesquisa histórica, de parte do nosso
passado, ao mesmo tempo em que amplia o leque da produção literária levada a
cabo pelos autores e pelas autoras negras deste país tão excludente.
[Resenha publicada, originalmente, no JORNAL OPÇÃO]
Nenhum comentário:
Postar um comentário