Do nada, decidiu fazer uma live.
Pensou em convidar os amigos [os das
redes sociais, os do chope no boteco] e os parentes mais próximos para o
evento? Que nada! Não postou cartaz no Instagram nem no Facebook, tampouco o mandou
no direct ou no inbox. Não convidou ninguém pelo WhatsApp, embora tivesse um número
bastante expressivo de pessoas na sua lista de contatos.
Nada, nada, nada. Simplesmente decidiu
e, na mesma hora, apareceu no Instagram diante de uma multidão de usuários da
rede cegos para a sua figura anônima.
Andrezinho acabara de entrar, para
verificar quantas pessoas haviam visto e curtido o seu post de uma selfie que
fizera à noite, só de pijama, quando deu de cara com a live do Jorjão. Na verdade, deu de cara com sua cara redonda
aparentemente travada numa expressão que não denotava a que viera. Jorjão nem
piscava. Os lábios grossos pareciam grudados com cola. A respiração parecia bem
controlada, como se não entrasse nem saísse ar pelas narinas. Nem o aviso de
que o amigo acabara de entrar mudou a fria expressão do seu rosto. Nem o
segundo aviso de que outra pessoa havia entrado, a usuária laura_2233, alterou
sua fisionomia fechada.
Que merda é essa?!, Andrezinho se
perguntava. Então o cara ia fazer uma live
[era uma live aquilo, não era?] e nem
o havia convidado? Grande amigo, hein? Já meio puto, tanto com a falta de ação
do outro quanto com o fato de ele não o ter avisado, resolveu lhe perguntar do
que se tratava aquilo. Mas a mulher que havia entrado há pouco, talvez mais
ansiosa que ele, perguntou primeiro.
Jorjão respondeu? Que nada! Continuava
exibindo, impávido, a mesma cara negra travada num frame que não seguia adiante nem a pau.
A essa altura, mais oito pessoas haviam
entrado, o que já era um bom público para uma live sobre a qual ninguém ficara sabendo. Mas Jorjão continuava na
dele, imutável. Há cinco minutos se encontrava assim, enquanto todos esperavam
pelo início da live [se é que já não
havia começado de fato]. O que levaria alguém sem status algum de celebridade ou subcelebridade, de artista famoso e
de relevante importância para a cultura nacional, ainda mais em meio a uma
quantidade absurda de lives pipocando
todos os dias no Instagram, no Facebook, no YouTube, na TV, todas na busca
frenética por audiência durante a pandemia de Covid-19, o que levaria alguém
nessas condições a se lançar numa live-surpresa
e permanecer assim, imóvel e enigmático como numa performance? Nesse ponto
Andrezinho se lembrou das performances da sérvia Marina Abramovic.
É uma performance, Jorjão?
Nenhuma palavra, nenhum gesto, nada,
nada. Só o olhar penetrante do amigo atravessando a tela do celular e batendo
direto no olhar dos espectadores virtuais.
A mulher, a laura_2233, vazara há
tempos. Restavam ainda nove curiosos, gente com tempo de sobra e muita
paciência para ficar ali, tentando decifrar a cara negra e intransponível do
Jorjão. A cara-performance do Jorjão.
Alguém entrou, deu uma espiada rápida e saiu. Mais dois aproveitaram a
deixa e caíram fora. Jorjão parecia não se incomodar com esse entra e sai. Uma amiga em comum dos dois entrou, ficou um
pouco, clicou no emoticon de mãos
batendo palmas, e foi-se também. Mais um saiu; antes, porém, escreveu: Que
porra é isso?! Um minuto depois, restavam Andrezinho e um persistente
aldodasilva3. Andrezinho estava doido pra se mandar, já não aguentava mais
aquilo, mas a curiosidade batia mais forte: queria saber aonde Jorjão pretendia
chegar com aquela esquisitice. Se aquela
imagem estática tinha algum significado, seria no campo da criação artística,
da provocação estética. Mas até onde sabia, ele não tinha veia artística
alguma. Sabia, sim, que gostava de tirar sarro com a cara dos outros, era um
gozador nato, e talvez fosse essa a sua intenção agora. Mas poderia ser também
um protesto: dia desses ele havia sido vítima de racismo, coisa que ele não
gostava de comentar, mas que o tinha magoado muito. Vai ver era isso.
Ou não.
Na real, Jorjão havia virado estátua
viva no Instagram, – e agora só restava Andrezinho contemplando sua
imobilidade.
Mais tarde, assim que ligasse para
ele, Andrezinho ia querer saber que
presepada tinha sido aquela. Mas ia tirar mesmo um sarro da cara dele só quando
passasse a pandemia do Coronavírus e os dois pudessem tomar de novo um chope
juntos. Até lá, máscara na cara e nada de aglomeração, que “o seguro morreu de
velho”.
Antes de sair, assim meio sem jeito de
deixar o amigo ali, sozinho, escreveu e publicou, Valeu, Jorjão! Em seguida,
clicou no emoticon das mãos batendo
palmas, – e mandou logo uns vinte, no exagero mesmo, só pra zoar o
performer.
Então, é assim: nem Geraldo Lima resistiu. E cometeu uma live. Estou de cara com o Jorjão. Quem piscar primeiro...
ResponderExcluirGeraldo com sua prosa sempre em sintonia com desafios do nosso tempo.
ResponderExcluirGeraldo com sua prosa sempre em sintonia com desafios do nosso tempo.
ResponderExcluirNa real, somos todxs estátuas vivas no Instagram. Muito bom texto, Geraldo!!!
ResponderExcluirJorjão e Andrezinho esses personagens são foras de series. Adorei a ideia fazer uma live de estátua viva.... Muito Bom
ResponderExcluirKkkkkkkkkkkk Jorjão inovando! Kkkkkkkk
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