sexta-feira, 21 de agosto de 2020

A live

 

 Por Geraldo Lima

 

Do nada, decidiu fazer uma live.

Pensou em convidar os amigos [os das redes sociais, os do chope no boteco] e os parentes mais próximos para o evento? Que nada! Não postou cartaz no Instagram nem no Facebook, tampouco o mandou no direct ou no inbox. Não convidou ninguém pelo WhatsApp, embora tivesse um número bastante expressivo de pessoas na sua lista de contatos.

Nada, nada, nada. Simplesmente decidiu e, na mesma hora, apareceu no Instagram diante de uma multidão de usuários da rede cegos para a sua figura anônima.

Andrezinho acabara de entrar, para verificar quantas pessoas haviam visto e curtido o seu post de uma selfie que fizera à noite, só de pijama, quando deu de cara com a live do Jorjão. Na verdade, deu de cara com sua cara redonda aparentemente travada numa expressão que não denotava a que viera. Jorjão nem piscava. Os lábios grossos pareciam grudados com cola. A respiração parecia bem controlada, como se não entrasse nem saísse ar pelas narinas. Nem o aviso de que o amigo acabara de entrar mudou a fria expressão do seu rosto. Nem o segundo aviso de que outra pessoa havia entrado, a usuária laura_2233, alterou sua fisionomia fechada.

Que merda é essa?!, Andrezinho se perguntava. Então o cara ia fazer uma live [era uma live aquilo, não era?] e nem o havia convidado? Grande amigo, hein? Já meio puto, tanto com a falta de ação do outro quanto com o fato de ele não o ter avisado, resolveu lhe perguntar do que se tratava aquilo. Mas a mulher que havia entrado há pouco, talvez mais ansiosa que ele, perguntou primeiro.

Jorjão respondeu? Que nada! Continuava exibindo, impávido, a mesma cara negra travada num frame que não seguia adiante nem a pau.

 A essa altura, mais oito pessoas haviam entrado, o que já era um bom público para uma live sobre a qual ninguém ficara sabendo. Mas Jorjão continuava na dele, imutável. Há cinco minutos se encontrava assim, enquanto todos esperavam pelo início da live [se é que já não havia começado de fato]. O que levaria alguém sem status algum de celebridade ou subcelebridade, de artista famoso e de relevante importância para a cultura nacional, ainda mais em meio a uma quantidade absurda de lives pipocando todos os dias no Instagram, no Facebook, no YouTube, na TV, todas na busca frenética por audiência durante a pandemia de Covid-19, o que levaria alguém nessas condições a se lançar numa live-surpresa e permanecer assim, imóvel e enigmático como numa performance? Nesse ponto Andrezinho se lembrou das performances da sérvia Marina Abramovic.

É uma performance, Jorjão?

Nenhuma palavra, nenhum gesto, nada, nada. Só o olhar penetrante do amigo atravessando a tela do celular e batendo direto no olhar dos espectadores virtuais.

A mulher, a laura_2233, vazara há tempos. Restavam ainda nove curiosos, gente com tempo de sobra e muita paciência para ficar ali, tentando decifrar a cara negra e intransponível do Jorjão. A cara-performance do Jorjão.  Alguém entrou, deu uma espiada rápida e saiu. Mais dois aproveitaram a deixa e caíram fora. Jorjão parecia não se incomodar com esse entra e sai.  Uma amiga em comum dos dois entrou, ficou um pouco, clicou no emoticon de mãos batendo palmas, e foi-se também. Mais um saiu; antes, porém, escreveu: Que porra é isso?! Um minuto depois, restavam Andrezinho e um persistente aldodasilva3. Andrezinho estava doido pra se mandar, já não aguentava mais aquilo, mas a curiosidade batia mais forte: queria saber aonde Jorjão pretendia chegar com aquela esquisitice.  Se aquela imagem estática tinha algum significado, seria no campo da criação artística, da provocação estética. Mas até onde sabia, ele não tinha veia artística alguma. Sabia, sim, que gostava de tirar sarro com a cara dos outros, era um gozador nato, e talvez fosse essa a sua intenção agora. Mas poderia ser também um protesto: dia desses ele havia sido vítima de racismo, coisa que ele não gostava de comentar, mas que o tinha magoado muito. Vai ver era isso.

Ou não.

Na real, Jorjão havia virado estátua viva no Instagram, – e agora só restava Andrezinho contemplando sua imobilidade. 

Mais tarde, assim que ligasse para ele, Andrezinho ia querer saber que presepada tinha sido aquela. Mas ia tirar mesmo um sarro da cara dele só quando passasse a pandemia do Coronavírus e os dois pudessem tomar de novo um chope juntos. Até lá, máscara na cara e nada de aglomeração, que “o seguro morreu de velho”. 

Antes de sair, assim meio sem jeito de deixar o amigo ali, sozinho, escreveu e publicou, Valeu, Jorjão! Em seguida, clicou no emoticon das mãos batendo palmas, – e mandou logo uns vinte, no exagero mesmo, só pra zoar o performer.       


6 comentários:

  1. Então, é assim: nem Geraldo Lima resistiu. E cometeu uma live. Estou de cara com o Jorjão. Quem piscar primeiro...

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  2. Geraldo com sua prosa sempre em sintonia com desafios do nosso tempo.

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  3. Geraldo com sua prosa sempre em sintonia com desafios do nosso tempo.

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  4. Na real, somos todxs estátuas vivas no Instagram. Muito bom texto, Geraldo!!!

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  5. Jorjão e Andrezinho esses personagens são foras de series. Adorei a ideia fazer uma live de estátua viva.... Muito Bom

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