Por Geraldo Lima
Eltânia André,
mineira de Cataguases, estreou na literatura com o livro de contos Meu nome agora é Jaque [Rona Editora,
2007]. Esse livro reúne várias histórias contadas por um único narrador [um
contador de causos, podemos dizer
assim], o Tizé, que, aposentado, passa a se denominar Jaque [“Já que estou aqui
no mundo, vou viver plenamente cada dia”, pág.146]. São histórias que se passam
no interior e são contadas num tom leve e bem-humorado. No seu segundo livro, Manhãs adiadas [contos, dobra
literatura, 2012], a autora dá uma guinada no tom narrativo: as histórias,
narradas por vozes diversas, são densas e desvelam o cotidiano de vidas humanas
marcadas pela desilusão e pela falta de perspectiva. Assenta-lhes bem o verso
do poeta Manuel Bandeira no poema Pneumatórax:
“A vida inteira que poderia ter sido e que não foi”. Agora, em Duelos [contos, Editora Patuá, 2018],
Eltânia nos apresenta uma série de histórias em que adensa mais ainda o tom
narrativo, expondo com lirismo e, às vezes, com secura, o desencanto da vida
contemporânea num Brasil sitiado pela violência e pela mercantilização da vida
humana.
O livro já abre com um conto impactante, intitulado Uma das mil e uma noites, no qual a autora apresenta um recorte aterrador do Brasil atual: a violência contra homossexuais perpetrada por indivíduos de tendência fascista. “Um dos pontapés atingiu o crânio. Outro quebrou uma costela. O chute na cara. Bicha” (pág. 9). É esse espírito de extermínio, que contaminou a alma de parte do nosso povo, solapando o conceito de cordialidade do brasileiro, criado pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda, que esse conto expõe com crueza. É tão forte e apavorante a cena descrita que, a certa altura, o autor interrompe a sua criação, enojado: “...o sujeito ia partir para o ato – eu asfixiado, sem planejamento, retiro os dedos do teclado num átimo de lucidez, tentando estabelecer em que mundo dormitava meu pesadelo” (pág. 13). Podemos vê-lo, sufocado, premido pela necessidade de mostrar ao mundo essa atrocidade e, ao mesmo tempo, tomado pela sensação de impotência ante o terror: “Salve a Wanderléa, porra! Resignado, entendo que nunca pude salvar ninguém. Apenas indignar-me. Sinto náuseas. Não me reestabeleço. Os personagens assaltam-me, pedem para que a literatura seja vida e sopre neles o espírito que os moverá” (pág. 13). A metalinguagem aqui não se apresenta como mero artifício, mas, sim, como meio para expor os limites da criação literária e o papel do escritor diante do horror que nos sitia: “Estamos sitiados. Peço desculpas àquele poeta que sussurrou pela rede seu apelo por histórias mais líricas, poéticas e ternas – que também me rodeiam –, contudo elas hão de esperar, porque o mundo é esse caos obsessivo e possesso ladrando nos quintais” (pág.14).
Frente à ameaça
de perda das liberdades democráticas e da escalada da violência, o escritor
brasileiro parece se encontrar de novo diante da questão que Luís Costa Lima
tentou responder no seu livro Por que
Literatura? (Editora Vozes, 1969). Expondo sempre a importância de se
valorizar a questão estética e nos alertando para o risco da simplificação da
linguagem em busca de uma comunicação direta, ele escreve num dos ensaios que
compõem o livro: “A tarefa da literatura continuará a ser, agora como antes, a
de atingir e a de trazer na palavra a raiz das coisas onde se deposita a raiz
do homem” (pág. 38). Imerso nesse dilema e nessa crise, o
autor/personagem/narrador do conto de Eltânia se socorre das palavras de Ortega
y Gasset [“eu sou eu e minha circunstância”], sabendo que não poderá jamais
fechar os olhos para o mundo ao seu redor. “Ainda há para contar pelo menos
outras mil histórias que não recolhi na Pérsia distante de Sherazade” (págs. 14
e 15). O como contar essas histórias, sem prejuízo do fator literário, é a
questão que se impõe agora, e isso, como podemos ver nos demais contos de Duelos, Eltânia faz com perícia e
extrema sensibilidade.
EXPERIMENTALISMO,
BELEZA ESTÉTICA E TEMÁTICA RELEVANTE
Em pelo menos
quatro dos contos de Duelos, Eltânia
explora o aspecto experimental da narrativa. São eles: Uma das mil e uma noites, Enquanto lia Faulkner, Matança de passarinhos
e Teatro a céu aberto.
Em Uma das mil e uma noites, como já
destaquei, há o corte abrupto da narrativa, no momento em que se intensifica a violência
contra o personagem homossexual, para dar voz ao autor que, diante da gravidade
da situação, sente-se incapaz de seguir adiante com a história que está
contando. Só o narrar, no plano da imaginação, não lhe basta mais. A realidade
que o cerca é brutal demais e precisa ser denunciada. “Então, entendo
finalmente que eu preciso falar do nosso assombro, preciso falar da violência”
(pág. 13). Nesse instante, o narrativo e o argumentativo se mesclam para dar
conta da necessidade de desabafo do autor. No conto Enquanto lia Faulkner, temos uma narrativa em várias vozes: a do
moribundo, a do irmão, a da esposa e a de outros parentes que estão ao lado do
leito de morte do protagonista. É uma cena bastante teatral. São blocos de
narrativa, de monólogo, de fluxo de consciência, que se justapõem para nos
revelar o universo de hipocrisia e superficialidade das relações familiares no
meio burguês. O título e a própria estrutura do texto fazem referência, como se
pode notar, ao maravilhoso romance de William Faulkner, Enquanto agonizo. Matança de
Passarinhos, que nos mostra o inseguro e tenso mundo de um grupo de
crianças vivendo em meio a tiroteios na periferia, mais especificamente no
trajeto escola-casa, estrutura-se como um texto-coral, ou narrativa-coral, em
que as vozes, tensionadas pelo risco de morte iminente, se sucedem num falar exaltado
e sem prévia indicação. Desse modo, temos uma visão precisa da situação caótica
e violenta em que vivem essas crianças, que são abatidas como se fossem
passarinhos. Teatro a céu aberto, como o título aponta, tem muito a ver com
teatro mesmo: a estrutura do texto é o de uma peça teatral. O diálogo, embate
ou duelo, dá-se entre o Narrador e Romeu, e mais uma vez discute-se aqui a
questão literária ou o real poder da literatura. “Há a pergunta com a resposta
implícita: a literatura muda o mundo?”, indaga o Narrador a Romeu (pág. 110). O
Narrador, neste caso, tem o poder de demiurgo e pode decidir sobre o destino do
personagem, no caso, Romeu, este uma clara referência ao personagem de Shakespeare.
Metalinguagem e mistura de gêneros literários fazem-se presentes também neste
texto, dando conta da grande habilidade da autora de transitar entre as várias
camadas da criação estética.
Compondo ainda o
volume, temos dois contos de extrema beleza estética e força literária. São
narrativas em que a densidade poética da linguagem e a presença de frases,
geralmente curtas, tornam o conteúdo ainda mais expressivo e impactante. O
primeiro, Águas de dezembro, nos
introduz no ambiente de pobreza, assolado todos os anos pela fúria da natureza [no
caso, as cheias do rio], no qual uma mulher, marcada pela passagem do tempo e
pela tragédia, tem ainda disposição para “garimpar sombras nessas águas-barcas
do Lava-pés, riozinho da vida que corre em nós” (pág. 69). O segundo é Barreira liberada, que nos fala de um
amor lésbico e da angústia da espera. Aos poucos, vamos conhecendo a
personalidade complicada da protagonista e sua busca por um viver intenso. “Fui
embora, batendo a porta. Mais uma que fecho” (pág. 96). E olhem só a beleza
desta imagem: “Macia sua pele, seu perdão” (pág. 96). É, para mim, uma das narrativas ficcionais
mais belas escritas em língua portuguesa. Merece estar em qualquer antologia
dos melhores contos do século XXI. Desse modo, devemos prestar mais atenção à
produção literária da mineira Eltânia André, que vem dando mostras de estar,
cada vez mais, afiada no trato com a linguagem literária e com aflorada
sensibilidade para captar as angústias do ser humano e retratar criticamente as
mazelas sociais do nosso país. linguagem e a presença de frases,
geralmente curtas, tornam o conteúdo ainda mais expressivo e impactante. O
primeiro, Águas de dezembro, nos
introduz no ambiente de pobreza, assolado todos os anos pela fúria da natureza [no
caso, as cheias do rio], no qual uma mulher, marcada pela passagem do tempo e
pela tragédia, tem ainda disposição para “garimpar sombras nessas águas-barcas
do Lava-pés, riozinho da vida que corre em nós” (pág. 69). O segundo é Barreira liberada, que nos fala de um
amor lésbico e da angústia da espera. Aos poucos, vamos conhecendo a
personalidade complicada da protagonista e sua busca por um viver intenso. “Fui
embora, batendo a porta. Mais uma que fecho” (pág. 96). E olhem só a beleza
desta imagem: “Macia sua pele, seu perdão” (pág. 96). É, para mim, uma das narrativas ficcionais
mais belas escritas em língua portuguesa. Merece estar em qualquer antologia
dos melhores contos do século XXI. Desse modo, devemos prestar mais atenção à
produção literária da mineira Eltânia André, que vem dando mostras de estar,
cada vez mais, afiada no trato com a linguagem literária e com aflorada
sensibilidade para captar as angústias do ser humano e retratar criticamente as
mazelas sociais do nosso país.
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