segunda-feira, 21 de março de 2016

Vida de escritor-agricultor




Por Geraldo Lima 


Os periquitos descobriram nossa plantação de milho. Chegaram, em bando, numa alegria tremenda. Sobrevoaram a área, pousaram no telhado, sondaram o ambiente e depois partiram pra farra. Dei um susto grande neles. Voaram, pousaram na palmeira no quintal do vizinho e ficaram um tempo lá, discutindo o que fazer. Agora, às três da tarde, tenho que largar a leitura ou a escrita para me postar aqui, no fundo do quintal, como um espantalho. 


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É bem mais fácil escrever um poema, um conto, um romance, uma peça de teatro ou um roteiro de cinema do que cultivar uma roça de milho, ou uma simples plantação de milho no fundo do quintal. A natureza, ao mesmo tempo que nos fornece as condições ideais para o cultivo, apresenta também, de modo sistemático, todo tipo de praga capaz de pôr fim ao nosso labor. Aqui, já devo ter contado umas cinco espécies de lagarta atacando impiedosamente os pés de milho. Tento, a todo custo, escapar da ingenuidade e ufanismo de um Policarpo Quaresma, mas luto, contra a bicharada, de mãos vazias, sem agrotóxico. Vou vencendo aos poucos. Se vocês pudessem ver o tamanho dessas belezuras! 

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Avançando aqui na elaboração do meu novo romance. No início estava tudo muito bem planejado, início, meio e fim bem definidos, personagens e ações catalogados, descritos, só esperando o momento de se juntarem à massa narrativa que deveria seguir um curso preciso. Agora, já perto da 50ª página, vou avançando como quem abre clareiras na mata a facão. A cada passo, uma surpresa, um susto, uma nova emoção. Tem personagem que pintou no pedaço e cresceu além da conta, ameaçando levar a história para outro rumo. Era só para fazer uma pontinha e agora quer ficar até o final. Estou tentando segurar as rédeas, me manter na trilha, mas a imaginação vai me arrastando para lugares nunca dantes percorridos. Só sei de uma coisa: escrever é uma aventura; é isso ou então não é nada.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Rejeitos, uma palavra e sua sina

                                                    (imagem do Google)
Por Geraldo Lima

De repente a palavra REJEITOS, feito um monstro de pesadelo, invadiu nosso sono tranquilo, nossa consciência cansada de batalhas vãs, nosso universo cultural saturado de tudo e nada, nosso cotidiano de uma aflição contínua e mórbida. Veio na enxurrada dos acontecimentos imprevistos e indesejados. Saltou dos manuais técnicos das mineradoras e dos órgãos de fiscalização ambiental, dos calhamaços da legislação brasileira, dos discursos vazios e inoperantes, das páginas amarelecidas de jornais e revistas semanais, para o palco do embate verbal que, pelo menos por enquanto, nos lembra da nossa humanidade e do nosso compromisso com a preservação do planeta. 

Então a palavra REJEITOS sempre esteve aí, porém confesso que havia me esquecido da sua existência de coisa nociva e latente, acreditando que uma barragem, por sua musculatura de concreto, rocha e terra, pudesse mantê-la presa ad aeternum. Mas sua presença a partir de agora, sinistra e incômoda, parece-me impossível de ser ignorada, pois sabemos da tragédia que se instala quando ela atinge o pulmão de rios e oceanos.

A palavra REJEITOS camufla em sua semântica as palavras MORTE e DESTRUIÇÃO. Nela a palavra ESTÉRIL encontra um ventre que lhe dá vida e força. É irmã do ESGOTO e da LATRINA. Mistura-se à LAMA em concubinato suspeitíssimo. Não é palavra em que floresçam o sonho e a esperança. No seu espelho opaco não se reflete a “aurora de dedos róseos” de Homero nem o rosto de Diadorim após um dia inteiro de luta e amor inconfesso. Não há limpidez no seu sentido, não há humanidade no seu emprego. Nela cabem coisas como dinheiro e lucro, poder econômico e descaso, exportação e divisas, negócios e frieza, política e corrupção. Nela só não cabem coisas como oxigênio e cardumes de peixe, crianças nadando no remanso e lavadeiras entoando cantos de labor e festa, bichos saciando a sede e humanos se refrescando do calor. Nela não cabe, enfim, a água límpida (doce ou salgada) em que a vida, na sua multiplicidade, cresce em abundância e alegria.  Ela rima (rima pobre, é bem verdade) com DESLEIXO e DEFEITO. Bem poderia ser expulsa de todos os dicionários, mas, em tempos democráticos, não seria de bom-tom uma atitude tão extrema. Então conviveremos com ela, desassossegados sempre? Ou, num gesto de basta, a rejeitamos com tudo que há nela de ferro, alumínio e manganês?  

(Texto publicado, originalmente, na Revista Diversos Afins)

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

A realidade implacável


Por Geraldo Lima


Então você pensa, vou passar pelo menos um mês sem me deixar abater pela realidade brutal e cinza em que vivemos. Você pensa e age da única maneira que lhe parece possível – alienando-se. E para se alienar assim (um estágio de desintoxicação do veneno que nos entra mente adentro todos os dias, você justifica), deixa de ler os jornais impressos e on-line, de assistir ao noticiário televisivo e de ouvir os programas jornalísticos das rádios. A violência cessa momentaneamente. A fome desaparece da face da Terra num segundo. A corrupção (à esquerda, ao centro e à direita) não deixa rastro nem catinga. Todos os protestos, seja de que natureza for, calam-se. Não se ouvem mais as asneiras ditas por âncoras e comentaristas nos telejornais. A realidade, como num passe de mágica, suaviza-se como se nunca houvesse sido deformada pela rugosidade da alma humana.

A sensação de paz e saúde mental parece que vai durar para sempre. E você deseja de fato, do mais fundo do ser, que ela dure para sempre. Mas tudo (você logo descobre) é ilusão. Ninguém pode estar protegido, em sua redoma de vidro ou aço, contra os desencantos da realidade.

E essa tão desejada imunidade à realidade brutal dura até o momento em que você vê o BOPE agredindo e prendendo professores no Eixão Sul, em Brasília, durante um protesto da categoria em greve. A imagem é tão chocante que você sucumbe à força do pessimismo: depois dessa violência contra os educadores, todas as esperanças de que o país sairá da lama do atraso através da Educação estão mortas. Chegamos ao fundo do poço, você conclui, e procura voltar correndo para sua redoma. Mas antes que você chegue, outra tragédia barra a sua passagem – a lama que invade os arredores de Mariana, destruindo casas, meio ambiente e vidas humanas.

O rompimento de duas barragens de rejeitos da mineradora Samarco leva destruição e pânico ao distrito de Bento Rodrigues, em Mariana, na Região Central de Minas Gerais, é o que dizem as manchetes dos jornais, e por mais que você se esquive, as palavras sujas de lama e morte batem direto na sua cara e na sua consciência. Diante das imagens de destruição e desespero, seu coração se comprime de dor e impotência ao mesmo tempo. Como se isso não bastasse, constatam, dias depois, que o Rio Doce está oficialmente morto. Com esse nome, que nos acaricia a alma e o paladar, o destino que a ambição dos homens lhe reservou nos soa ainda mais amargo. A notícia de que mais um rio está morto, neste cenário de crescente escassez de água que aflige o planeta, é de nos deixar apavorados.

Então você se indaga, Ainda posso usufruir da tranquilidade da minha redoma de silêncio e paz? E como acha que sim, vai à sua procura o mais rápido possível. Só que a realidade brutal e tosca intercepta, mais uma vez, os seus passos. Você não pode mesmo fechar os olhos nem tapar os ouvidos aos tiros e explosões detonados na capital francesa. O espetáculo é de horror e tragédia. Outra vez, dez meses após o atentado ao jornal Charlie Hebdo, militantes do Estado Islâmico aterrorizam a Cidade Luz, mergulhando-a nas trevas do terror.  Paris é, nesse momento, apenas dor e medo. E aí você percebe que está longe, muito, muito longe da sua ilusória redoma de alienação e saúde mental.  A realidade, banhada em lama tóxica e sangue de inocentes, não lhe dá trégua nem chance de se manter alheio à sua dinâmica pesada e sinistra.

domingo, 13 de dezembro de 2015

Sobre a poesia de Muna Ahmad


Por Geraldo Lima

Muna Ahmad escreve há bastante tempo, mas ainda não teve a oportunidade de apresentar sua poesia a um número maior de leitores. Agora, com este livro de estreia, em que ela reúne sua produção de longa data, podemos, enfim, ter acesso à sua sensibilidade poética e ao seu domínio técnico da arte da palavra.

Nos cinquenta poemas que compõem o livro, na sua maioria curtos, – alguns são haicais e outros com  influência  da Geração Mimeógrafo ou Poesia Marginal da década de 70 ­– podemos nos deparar com registros líricos de cenas do cotidiano (“de manhã cabelos deixados na pia/bordam o branco de nossa convivência”), fragmentos de memória (“Ataliba Nina e Mimi,/subir e descer nas pernas do ‘m’/ mão vacilante/afundando o grafite/ no terror da página em branco”), referências ao Oriente Médio (“céu aberto/cáfila silenciosa/cruza o deserto”) até a simples descrição enumerativa de uma paisagem (“parafuso margarida pneu/abandono magnético/folhas na relva”). Embora marcados, essencialmente, pela emoção, pelo lirismo, nada aí chega ao transbordamento romântico. O uso da justaposição ou parataxe na composição de boa parte dos poemas inibe, de certo modo, o tom discursivo ou retórico e exige que o leitor participe da montagem final do texto em busca de um significado. Esse leitor, num poema como “jardim”, por exemplo, será ainda surpreendido por um instantâneo de haicai, de clique de máquina fotográfica, de pincelada impressionista.     

Ao escolher uma palavra de origem árabe para dar título ao seu livro, Muna pode nos dar a entender que o território afetivo em que sua poesia transita ou habita se circunscreve apenas ao mundo islâmico, mas, ao lermos seus poemas, essa impressão logo se desfaz. Sua ascendência árabe tem presença forte neles, mas a cultura brasileira e a nossa paisagem também se destacam ao longo do livro. Filha de pai palestino e mãe brasileira, suas raízes afetivas e culturais estão, de fato, fincadas em dois mundos.


Seus poemas, assim como o título do livro sugere (Muxarabi significa “muro de concreto em forma de arabesco que filtra a luz”), filtram a emoção e a percepção da realidade de modo que a força do seu lirismo inunde a alma do leitor com delicadeza e intensidade ao mesmo tempo. É poesia que, após sua leitura, reverbera em nossa mente.  É poesia que, na sua aparente simplicidade, dialoga com a tradição e conecta-se, pela intertextualidade, com outros textos, como em Penélope: “teceu os dias/ele não veio/queimou o cinema”. Daí o convite, mais que urgente, à leitura desses poemas de Muna Ahmad.

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Uma manhã de fúria

Por Geraldo Lima

Meu compromisso no dia seguinte, logo pela manhã, era ir ao Plano Piloto, com horário marcado para chegar e tudo. Se posso evitar, marco sempre os compromissos para o período da tarde, quando o trânsito nas vias do DF costuma estar mais tranquilo. Não foi possível dessa vez, então lá ia eu enfrentar o Monstro do Engarrafamento.

Um dia antes, já fiquei pensando no aborrecimento de ter que enfrentar o engarrafamento de carros até a Ponte do Braghetto. Se não acontece nenhum acidente entre o Balão do Colorado e o Balão do Torto, o fluxo de automóveis, ônibus, motos e caminhões costuma ser até rápido; o problema é que quase sempre acontece alguma merda e o trânsito trava. Geralmente é um caminhão desgovernado que desce ladeira abaixo fazendo estragos. Outras vezes, uma moto não encontra espaço suficiente entre a fileira de carros e a tragédia está posta. Ônibus quebrados à beira da pista costumam congestionar o trânsito também. Ônibus quebrando durante o trajeto é coisa corriqueira, então já viram.

Não deu outra. No dia seguinte lá estava a tira de carros indo da entrada de Sobradinho até perder de vista. Saí do Grande Colorado para deixar minha esposa no trabalho, em Sobradinho I, e fui maquinando que a melhor estratégia seria pegar a DF-001 até o Paranoá, descer até a beira do Lago e contorná-lo até a Ponte do Braghetto. A distância é bem maior, mas só o fato de não ficar uma hora ou mais no trânsito lento, quase parando, já compensaria. Peguei a DF-440, que sobe beirando o Condomínio Império dos Nobres e fui sair na DF-001. Que beleza! Até o Paranoá, havia praticamente só eu na pista. Fiquei pensando nos que enfrentavam a lentidão do trânsito da BR-020 e concluí que havia feito a melhor escolha da minha vida. Quase sempre erro nesse tipo de escolha. Quando mudo de fila num banco ou supermercado, por exemplo, sempre escolho a fila que vai demorar mais. Parece coisa escrita nas estrelas. Ou praga, sei lá. Dessa vez estava me dando bem, e era só felicidade.

Dizem que alegria de pobre dura pouco, e creio nisso. A minha durou até pegar a EPPR, que vai contornando o Lago Paranoá, passa em frente ao Varjão e entra no Lago Norte, ali nas proximidades do Shopping Iguatemi. Minha gente, caí num engarrafamento que deixava o da Descida do Colorado na lanterninha. Mas agora não havia outra saída senão (como disse aquela ministra do Turismo) “relaxar e gozar”.

Pensar e dizer é fácil. No fundo, no fundo o que nos domina mesmo é a raiva e o estresse. Fiquei pensando nos que precisam fazer esse trajeto todos os dias e que, invariavelmente, enfrentam esse inferno. Só consigo enxergar prejuízo, tanto para o cidadão quanto para o Estado. São funcionários chegando atrasados ao local de trabalho e tendo mais gastos com a manutenção do carro. São pessoas que, a longo prazo, ficarão doentes e lotarão os hospitais públicos e os privados. É gente que chega irritada ao trabalho e isso só gera um ambiente improdutivo e tenso. São indivíduos que, a qualquer momento, podem perder as estribeiras e provocar cenas de violência absurda. Enfim, a lista de prognósticos ruins é extensa. E qual é a solução para melhorar esse trânsito caótico? Não sou especialista em trânsito, mas tenho lá a minha sugestão: METRÔ. Só ônibus não resolve. Metrô moderno e eficiente. E pronto!  

Ah, quanto tempo gastei para chegar ao local do meu compromisso, no Setor de Autarquias Sul? Uma hora e meia! Quase uma eternidade! Como havia saído mais cedo, com tempo de sobra, cheguei na hora exata. Nem mais, nem menos.

(Texto publicado, originalmente, no Jornal de Sobradinho)


domingo, 27 de setembro de 2015

Duas históricas - do real à ficção

Por Geraldo Lima

Loucura


Todo mundo já deve ter ouvido a expressão "louco de jogar pedra", ou: "Fulano é louco de jogar pedra". Eu nunca tinha visto alguém assim, que ilustrasse literalmente o sentido dessa expressão. Hoje eu vi. E é uma imagem triste e insana de se ver. Uma mulher, louca, como se pode perceber, andando na calçada e arremessando, vez ou outra, pedras nos carros. Pedras enormes, capazes de provocar estragos imensuráveis. Ela simplesmente abaixava, apanhava uma pedra e a arremessava. Às vezes, com pontaria certeira. Definitivamente, coisa mais perigosa é a loucura iconoclasta com um arsenal de pedras ao alcance das mãos.



Inimigos


Entraram na cabeça dela e bagunçaram geral. Misturaram espaço e tempo, subverteram sua linguagem, minaram os pilares da razão. Ela luta contra eles dia e noite, ruidosa, sem pudor e limites. No ermo, tenta expulsá-los com palavrões e socos no ar. Energia gasta à toa, é o que nos parece, pois são milhares e intangíveis. Assim, sozinha e desarmada, com estratégia que se repete infindável, a guerra que ela trava pode ser inócua e perdida.

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Dona de si


Por Geraldo lima

Era uma mulher livre – no sentido pleno da palavra.

Ele a conheceu assim, um horizonte amplo e indefinido. Ainda que o amasse, não conhecia fronteiras nem amarras. Era uma dessas capazes de nos fazer sofrer mesmo em pleno gozo, tal a sensação de fluidez do seu espírito e o estado sempre movediço do seu corpo. Um corpo que, estando em nossos braços, já escorregava para outro plano, outros desvãos de desejos e sonhos.  

– Morri no dia em que ela me deixou – ele me revela com a voz ainda doente, cravada de pus e dor. Essa sua voz sem cura reverbera em minha pele e atravessa minha mente de ponta a ponta.

Dela, ele se recorda principalmente do cheiro de carne e de alma em brasa. Isso que, para ele, é uma incisão profunda na memória, como essas que o vento, ao longo de séculos, milênios, inscreve nas rochas.