quinta-feira, 23 de abril de 2015

A voz


Por Geraldo Lima


O telefone toca e saio correndo do banheiro enrolado na toalha. Chego ainda a tempo de atender e ouvir do outro lado a voz que vem me aporrinhando há dias. Voz de homem, fazendo-se de educado e sedutor. "Olá, boa-noite, tudo bem com você?", ouço e, de imediato, sinto vontade desligar na cara do sujeito. (Já me ergui da mesa às pressas, em meio à refeição, para me deparar com essa mesma voz de telemarketing brotando de um universo paralelo, moldado pela tecnologia e pela frieza dos negócios.) Sinto vontade, mas não o faço. Desta vez estou disposto a ir até o fim, para ver os desdobramentos desse enredo já gravado. A voz aguarda minha resposta. Deve pensar: que cara mal-educado, mas, ainda assim, continua. "Você tem TV por assinatura?". Mantenho-me calado, só aguardando as próximas falas do ser eletrônico que ousou me tirar do banho. Não há respiração do outro lado. Parece mesmo não haver vida. Só máquinas e intenções frias e extremamente calculadas. Deve ter pensado que eu, além de mal-educado, tinha um baixo nível de escolaridade, pois fez uma pequena mudança na pergunta: "Você tem algum tipo de TV a cabo?". Não sei se foi impressão minha, mas o tom de voz estava mudando, parecia tornar-se impaciente, meio rude. Mas, como era possível?! Estava tudo tão calculado assim? Essa voz era capaz de exprimir algum tipo de emoção? Comecei a gostar do jogo, a sentir (ainda que fosse ilusório) que estava ganhando. "A NET agradece a sua atenção!", e dessa vez não tive dúvidas: a voz eletrônica estava irritada. A voz eletrônica deixou escapar algum tipo de sensibilidade, de emoção pós-humana. Ah, da próxima vez, só por curiosidade literária, vou responder uma ou outra das suas perguntas para ver se essa previsibilidade eletrônica é infinita.

quinta-feira, 26 de março de 2015

Neste 15 de março

 Por Geraldo Lima

Neste 15 de março, ficamos em casa.

Neste 15 de março, recebemos a visita de duas amigas de longa data, e a casa se encheu de afetos e palavras.

Neste 15 de março, saí para comprar agrião, acelga e vagem na feira de hortifrutigranjeiros do Colorado.

Neste 15 de março, fui ao Plano Piloto buscar e levar uma das nossas amigas, que sofre de câncer, e vi faixas chamando para a rua.

Neste 15 de março, comemos yakissoba, preparado pela nossa amiga japonesa, e, entre uma garfada e outra, recordamos nosso passado em Planaltina e alhures.

Neste 15 de março, revimos fotografias da nossa juventude repleta de energia e sonhos, e bateu uma nostalgia danada daquele tempo vivido já no final dos anos de chumbo.

Neste 15 de março, minha esposa, usando o celular, fotografou fotos do álbum de uma das nossas amigas e as postou no Face, alardeando o quanto éramos jovens e magros.

Neste 15 de março, não liguei o televisor, nem li o Correio Braziliense, nem acessei a página do UOL.

Neste 15 de março, li um texto sobre o poeta e cineasta Pier Paolo Pasolini, falando da sua angústia em relação ao cenário político da Itália da década de 1970.

Neste 15 de março, li alguns trechos do romance “A chave de casa”, da escritora brasileira Tatiana Salem Levy e fui transportado para Esmirna, na Turquia – ah, o mágico poder da literatura!

Neste 15 de março, postei um texto no Twitter e outro no Facebook criticando aos que pedem a volta dos militares ao Poder – tentei ficar calado, mas não consegui.

Neste 15 de março, falamos do nosso desencanto com o PT, do quanto nos sentimos frustrados e traídos com suas derrapadas no governo, mas nem por isso marcharíamos ao lado dos Bolsonaros da vida.

  

domingo, 1 de março de 2015

Seu carnaval



Por Geraldo Lima

Você brincou o Carnaval, como todo bom folião, ou ficou em casa repousando e zapeando em busca de programas televisivos para além do reinado de Momo?

Você se esbaldou na folia sem culpa nem medo ou buscou o sossego de um retiro espiritual na tentativa de repor as energias com orações ou meditações?

Você pulou nalgum bloco de carnaval até cair ou se manteve de pé, na labuta dos que não têm descanso nem em época de festa global?

Você sambou na avenida ou dormiu até tarde após passar a noite inteira assistindo pela TV os desfiles das escolas de samba do Rio e de São Paulo?

Você foi atrás das velhas marchinhas de carnaval, numa cidade do interior, ou nem deu bola pra nostalgia e se deixou arrastar pelas novidades dos trios elétricos da Bahia?

Você brincou, pulou, beijou e se entregou de corpo inteiro ou tudo não passou de ilusão para acabar em lágrimas e dor na quarta-feira?

Você botou a mais bela e cara fantasia para se sentir rei ou rainha na multidão ou preferiu usar somente a velha e surrada máscara de todos os dias?

Você foi destaque nalgum carro alegórico, sentindo-se acima dos mortais, ou se encontrou mesmo foi no asfalto, junto à alegria dos anônimos?

Você encontrou, em meio ao delírio dos foliões, o amor da sua vida ou voltou para casa mais sozinho ou sozinha do que se encontrava antes de se jogar na folia?


Você ainda está em transe com o batuque dos pandeiros, surdos, agogôs e tamborins ou já jogou no lixo a fantasia e começa a experimentar na carne a dura realidade pós-folia?

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Duas crônicas




Por Geraldo Lima



Sabe quando você quer ler muito um livro e não o encontra na estante ou na pilha de livros num canto da casa? Você tem certeza (ou acha que tem) de que o comprou, só não se lembra do título (deve tê-lo comprado junto com outros tantos, daí o esquecimento, é bom dizer isso pra coisa não ficar meio absurda), mas quer lê-lo de qualquer maneira, sente-se até angustiado por não encontrá-lo, um leve desespero, vontade de se socorrer de São Longuinho (melhor não se entregar a essas superstições, dar pulinhos, meio ridículo, não?), enfim, de repente bateu a vontade de ler algo daquela autora ou daquele autor, e você comprou o livro dela ou dele (há lacunas na memória, mas, caramba!, então por que veio à mente a ideia de um livro de cujo título você não se lembra, mas sabe que é da autora tal ou do autor tal?!). Você procura por esse livro à exaustão, até desistir e pegar outro livro. Aí, no outro dia, ou dias depois, você resolve dar mais um espiada (a esperança ainda não morreu) e, para seu espanto, lá está o livro! Não o que você pensava existir ou ter comprado, nem mesmo a autoria corresponde à imagem que você tinha na mente. Um outro livro, uma outra autora, um outro autor, mas era de fato aquele que você tanto desejava ler dias atrás.

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Vez ou outra algum banco me telefona avisando que acaba de disponibilizar um crédito na minha conta. Esta semana ligaram. O funcionário me disse: "Seu, Geraldo, acabamos de disponibilizar um crédito na conta do senhor. Está interessado?" Respondi na hora: "Não. Obrigado." Não tenho dinheiro sobrando, mas também não estou ainda no desespero, precisando cair nas garras da agiotagem. Sonho mesmo é com o dia em que algum banco me telefone anunciando (ao som de trombetas celestiais) que, por eu ser um cidadão honesto, desses que pagam regularmente os impostos devidos e as contas pessoais, por eu ter sido até então um trabalhador assíduo e dedicado à profissão, um ser que cultiva a paz e a harmonia social, com uma aura irradiando sempre bons fluidos (e blá-blá-blá-blá...), por conta de tudo isso e muito mais, eles estão disponibilizando o crédito de um milhão (não desejo muita coisa) na minha conta, um presente, seu Geraldo, não precisa nem pagar! Aguardo ansioso esse telefonema das linhas de frente do sistema financeiro.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

XIV. Revolução de Trinta




Por Geraldo Lima

(Trecho de uma carta encontrada nos pertences de minha vó.)       
        
Amália,
        
A escrita, commo podes ver, vae torta, diversa da de antes, não por me encontrar trêmulo no mommento por cauza da metralha, das grannadas, do transtorno que é viver essa tempestade das idéas, mas por me restar, meo amor, somente a esquerda, pôsto que a destra levou-a a fera da guerra. Ainda assim ella diz tudo, do amor e da saudade que trago em mim, pensando em ti agora, e se ao te rever não correr desembalado rumo aos teus braços, não será por falta de vontade, mas tão-somente por ter me levado uma das pernas a bôca faminta d’uma grannada.
         (...)

(Do livro Tesselário, Selo 3 x 4, Editora Multifoco.)


terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Vida que vai, vida que chega

Por Geraldo Lima

Este ano, a Dama da Foice não economizou na colheita e ceifou a vida de muita gente boa, –  gente que faz falta ao nosso cenário cultural. Fez um estrago grande no time dos artistas, dos escritores e dos intelectuais, aqui e em terras estrangeiras. Vão dizer: isso é normal, que nesse time aí tem muita gente, e a morte não descansa nunca, ceifando vidas a todo instante, sejam elas famosas ou não.

No time dos escritores, por exemplo, ela levou, sem dó nem piedade, três grandes da nossa literatura: João Ubaldo Ribeiro, Ariano Suassuna e Rubem Alves. João Ubaldo escreveu um dos livros fundamentais da nossa literatura: “Viva o povo brasileiro”. Um calhamaço, desses que param em pé na estante. Ariano Suassuna, por sua vez, tornou-se um dos dramaturgos mais populares do nosso tempo ao ter algumas de suas obras adaptadas para a TV e para o cinema. É o caso da peça “Auto da Compadecida”, transformada em minissérie, apresentada pela Globo, e depois em filme de grande sucesso em nossos cinemas. Defensor radical da cultura popular brasileira, criou, juntamente com outros artistas, o Movimento Armorial, com o objetivo de fundir cultura popular e cultura erudita.  Rubem Alves é outro caso de popularidade. Em reuniões de professores ou em seminários sobre Educação em terras brasileiras, quase sempre se faz a leitura de algum de seus textos. Como diria Nelson Rodrigues: É batata! Educador e teólogo, ele fez, sem dúvida, a cabeça de muita gente. A minha, propensa a nadar contra a corrente, criou certa indisposição à leitura dos seus textos, – é que a onipresença tende a provocar em mim uma atitude refratária.

Para além das nossas fronteiras, a morte silenciou Gabriel García Márquez, escritor colombiano ganhador do Nobel de Literatura de 1982. Ele foi responsável, também, por criar o chamado Realismo Mágico na literatura latino-americana. Seu maravilhoso romance “Cem anos de solidão” é um exemplo genuíno desse gênero literário. No cinema norte-americano, a vilã levou um ator de cujas interpretações eu gostava muito, Philip Seymour Hoffman, e outro que sempre me provocou certa antipatia, Robin Willians. Explico a causa dessa antipatia: ele, para mim, queria ser engraçado em todas as ocasiões, e isso me pareceu sempre excessivo, chato até. Graça demais cansa. Tolero-o em “Sociedade dos poetas mortos”, e só! Mas tenho consciência da sua importância para o cinema de Hollywood e do quanto ele arrancou risos de plateias pelo mundo afora. Seymour foi um ator denso, desses capazes de nos fazer sentir a vida em sua força máxima. Ator com vida interior intensa e força expressiva marcante. Um filme protagonizado por ele que recomendo é “Dúvida”. De quebra, há ainda a presença arrebatadora da atriz Meryl Streep.  No Brasil, o estrago não foi menor: a infeliz calou José Wilker, Paulo Goulart e Hugo Carvana, vozes e expressões de relevo na televisão, no teatro e no cinema. Nossa mídia televisiva, tão infestada de caras inexpressivas, ficou a partir de então mais pobre e insossa.

Bom, a lista fatídica continua, daí o imenso estrago feito pela “Indesejada das gentes”. O ano está findando, torçamos, então, para que ela tenha já terminado seu triste e melancólico trabalho. A vida só não fica sem sentido com tantas perdas porque, na contramão dessa atividade fúnebre, ela se renova sempre. Daí eu saudar, neste texto, a chegada de duas novas pessoinhas à nossa família, dois novos sobrinhos: Nícolas e Maria Flor. Vida longa a vocês, pequeninos!


Para todos e todas, um 2015 de superação e harmonia!  

(Texto publicado, originalmente, no Jornal de Sobradinho e no Jornal Opção)

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Um estranho mundo que nos atrai

Por Geraldo Lima

Tomei contato com os textos de Claudio Parreira no extinto O BULE, blog literário do qual fomos colunistas.  O humor, a narrativa ágil e envolvente, as frases curtas, sem floreios, a temática variada, criando vasto painel sobre as mazelas que afligem o ser humano, tudo isso me fez gostar da sua narrativa desde o princípio. Parreira explora, de modo bastante irreverente, a seara do fantástico e do absurdo, dando sutis estocadas no senso comum e no real insosso.

A sua biografia nos dá conta de que ele já foi colaborador da revista Bundas, do jornal O Pasquim 21, Caros Amigos on-line e da agência Carta Maior. Em 2012 lançou seu primeiro livro, o romance Gabriel (Editora Draco). Agora, mais recentemente, lançou o livro de contos Delirium (Editora Penalux), e é sobre ele que tecerei alguns comentários.

Delirium é composto por vinte e nove contos. Boa parte deles pode ser classificada como minicontos, como é o caso de Mariana, Camarim, O vendedor de datas e Ponto de vista. Os longos, no caso, não passam de sete ou oito páginas. A narrativa, em boa parte deles, é feita em primeira pessoa e, predominantemente, por um narrador masculino. Fantástico e absurdo se  alternam, atravessados pelo humor e pela ironia, elementos marcantes na obra de Claudio Parreira. Um tema parece predominar ao longo do livro: a solidão do indivíduo na urbe moderna.  

É bom que se diga que esse tipo solitário, retratado nos contos de Delirium, é sempre do sexo masculino (a mulher aparece aí, geralmente, como a femme fatale ou como a mulher misteriosa, quase impalpável). No conto Z, o protagonista, por exemplo, amarga sua solidão há séculos (eis a presença do fantástico) por ter violado o acordo feito com Ana, mulher misteriosa que lhe surgiu do meio da multidão (ou “desse hospício”, como diz o narrador-personagem). O acordo consistia em não abrir o livro que ela havia colocado diante dele, no chão. Ao se render à curiosidade, ele trai a confiança dela, levando-a a partir e se misturar de novo à multidão.  Nesse conto, aliás, o enredo é bastante complexo, pois o autor joga com a dualidade entre real (o que existiria de verdade, o palpável) e ficcional (o que é fruto da imaginação, no caso, do personagem Z). Diz Ana: “Eu tenho todos os vícios – continuou ela. – O pior deles é crer nos homens reais”. O que temos aí é a ficção dentro da ficção, o ilusionismo arrastando o leitor para as teias da dúvida.

Exemplo clássico de narrativa do absurdo, quase aos moldes de Kafka, Ausência de crime aparece como um dos melhores contos desse volume. O protagonista se vê, de repente, diante de uma situação que foge ao normal: um oficial entra em sua casa com o objetivo de prendê-lo. Mas que crime ele praticou? Assim como o personagem de O processo, de Kafka, não há, aparentemente, crime algum. O processo, no entanto, desencadeou-se e parece irreversível. Até que aparece o crime – e aqui entra a verve humorística, debochada, de Claudio Parreira: “– Ausência de crime – falou. – Sua ficha é a única no País que ainda permanece limpa, e isso, segundo o novo Código Penal, configura crime da mais alta hediondez”. Ironia fina, se pensarmos no que acontece hoje no Brasil com a corrupção contaminando todos os setores da sociedade. Parreira parece, no entanto, esquivar-se de imprimir um tom muito sério ou sisudo à sua narrativa, mesmo quando ela aponta para uma crítica mais contundente ao comportamento humano.

Sobre os personagens que povoam Delirium, disse Luiz Bras: “São homens e mulheres de natureza excêntrica. Comandados por outras leis físicas e espirituais. Sua companhia incomoda, dá medo. Por isso gostei tanto de conhecer essa gente”. O que Parreira faz é isto: apresentar-nos uma galeria de tipos estranhos, gente que habita o reino do fantástico, da mágica, do irreal e, às vezes, do real gasto e sufocante. Gente capaz de criar um sol dentro do quarto, que flutua, que tira um crocodilo da boca, que vomita mitos.  Gente que retrata, de certo modo, a fragilidade da nossa existência. Daí a importância desses contos de Claudio Parreira: apresentam a vida humana na sua complexidade, – ela que, muitas das vezes, é marcada pela solidão e pela dor.

(Resenha publicada, originalmente, no Jornal Opção,  em Goiânia)